09/05/2024
EFLEXÃO NA IGREJA QUE VIROU GALPÃO Talvez você não tenha noção da dor traumática que é de uma hora para outra, ter teu solo tirado de debaixo dos teus pés. E depois de esperar por várias horas achando que ia se livrar de mais um percalço da vida, vê famílias de vizinhos saindo deprimidas e abandonando tudo para sobreviver. Você provavelmente não sabe (Graças à Deus) o que está saindo desesperado, despertado por sua mãe no meio da madrugada onde você dormiu ouvindo o som da chuva no telhado e despertou para saber que era o seu último dia ali, naquele lugar de histórias contadas pelos avós, pelos pais e algumas vivas por você mesmo. O lugar onde nasceram e cresceram os irmãos, onde se plantou arroz, milho, soja, aveia, mandioca, batata, mas tudo se perdeu. Que bom que você nunca precisou sair sem saber para onde ir e ter que desligar rapidamente a eletricidade para a família toda não morrer eletrocutada com a água que já invadiu sua casa e já matou o seu cachorrinho que estava dentro da casinha no quintal enquanto você dormitório. E os coelhos que estavam na gaiola lá fora, e as galinhas? É, você não passou por uma experiência dessa, que bom. Ter uma casa de algum pai para passar a noite, só se for em outro bairro, fora da cidade, mas como ir se as águas já destruíram os carros, as estradas? Embora você tenha que se salvar, ao perceber que já não há mais diferença entre o céu aberto e o rio, e a estrada, e nada, nada, não sobrou nenhuma referência geográfica, sem mapa, sem ajuda, sem nada. Aí, para sair rápido, para evitar a "leptospirose", você, nada. De repente, a correnteza comédia mais uma casa na sua frente e um pedaço de madeira bate na sua perna, dói, mas você tem que nadar no rio da desgraça que acaba de ser revelado. Daí você busca força de onde não tem pra orientar seu irmão, sua mulher, a sua filha está dizendo: "pai, cansei, eu vou morrer" ___ Não, minha linda você vai conseguir, papai está aqui. E você vira herói ao mesmo tempo que é um desabrigado, um desvalido, mas também um soldado sem farda, com frio por todo o corpo, mas com o coração em chamas e, subitamente descobre que não está sozinho nesse exército; Acaba de passar um soldado embora de um soldado abatido boiando nas águas, outros chegam de barco, de canoa, até de jangada improvisada para te dar uma força... E é ali, nos braços fortes dos adjetivos de conforto e ânimo, nas frases de esperança que aquecem o corpo frio, proferidas por vizinhos soldados; homens e mulheres solidários, valentes e desafiadores de intempéries, no bater do remo nas águas desorganizadas, você percebe que a força nunca esteve nos fuzis e fardas dos soldados, nunca esteve no paletó do prefeito e do deputado. Ao chegar no abrigo, naquele canto, não há canto como nos cultos, há colchões organizados com lençóis, travesseiros, há mulheres de avental e de toca cortando pão e passando manteiga,há garrafas de café quentinho para rir o coração e enxugar às lágrimas que se misturam por duas razões: a primeira de desolação por ter perdido tudo; a segunda é de alegria por ter conseguido escapar com vida. E ali, recostando a costa na parede da igreja, onde está escrito "grupo de homens valentes de Davi", você tem uma espécie de "eureka" e descobre que nunca esteve nessa igreja, ou foi poucas vezes, mas é ali que se reúnem o humano e o divino, é nesse lugar que as almas são abrigadas todos os dias, não das enchentes naturais, mas das espirituais. Na igreja que virou galpão e abrigo, você procura inutilmente o "estado", mas se desilude sussurrando baixinho, quando é interrompido por uma irmã que traz um lençol e uma garrafa de água mineral e te diz que tem pão com manteiga na caixa de papelão na mesa e tem café e chá. Então você se dá conta de que apesar de ter perdido tudo o que construiu, pode se reerguer novamente, pela força de Deus, pela sua própria força, mas sobretudo, pela força do irmão, do vizinho, do patriota, da solidariedade do brasileiro. Sérgio Júnior