28/05/2020
“Nikita. Olho para ela, ao fim do dia, e vejo-me a mim, há quase treze anos. A SIC ia celebrar qualquer coisa com uma grande parada na Avenida da Liberdade. Convidou a UZ a participar com cães. Eu fui com a Nikita. Éramos o número seis. A parada foi transmitida em directo pela SIC. Era, creio, sábado. E eu, sempre que via uma câmara, erguia aquela espécie de raqueta de ténis de mesa com o número seis. Eu acreditei que a Nikita ia ser adoptada. Que nos dias seguintes alguém iria à UZ e diria - quero conhecer o cão que tinha o número seis. Foi há treze anos e há treze anos eu já não era uma menina. Era uma mulher feita, com mais do que idade para ter juízo. Mas acreditei.
O que aconteceu foi que, desde então, as pessoas com quem trabalhava e alguns amigos passaram a identificar-me com os cães. 'Eu vi-te a correr atrás de um cão na Avenida da Liberdade', brincavam. E eu respondia 'número seis, vai lá buscá-la.' Não aconteceu. Mas eu passei a ser a pessoa dos cães. Prosélita. Depois, há uma altura em que, no mundo cá fora, a gente deixa de falar deles, porque já todos sabem e maior parte está cansada de ouvir-nos.
A Nikita espera desde sempre na UZ. Terá14 anos. Quando a conheci era jovem. Vivia com o Pardo. O Pardo foi adoptado pela família do Rodrigo, um miúdo que que agora será um homem e na altura não tinha idade para ser voluntário mas apareceu a dizer que fazia o que fosse preciso e era verdade. A Nikita ficou. Alguns dizem que a Nikita é má. Não é. A Nikita é forte. Mais forte que eu - resistiu muito melhor ao tempo e não perdeu nada. E é fraca. Porque também sofre. Ela não sabe o que é viver numa casa, mas de alguma maneira, tenho a certeza, anseia por aquilo que desconhece e que, provavelmente, nunca conhecerá. E isso é uma tragédia.”
Isabel Ramos.
Outro ano se passou sobre este texto e foto. A Nikita tem agora 15 anos e continua no abrigo da União Zoófila. Sozinha numa box, escava o chão, roça-se nas paredes, morde as grades, uiva.
Os voluntários soltam- na mais vezes do que o normal, tentando apaziguar esta angústia. Mas não resulta. Apenas uma família poderia curar esta tristeza.