A LENDA DA CRUZ DE FERRO
Foi em Cunha, pouco distante daquela cidade, para os lados de Campos Novos morava o Juca Mineiro com sua adorável companheira preocupado unicamente com o desenvolvimento do sítio. Enquanto isso se murmurava algo pelos arredores sobre a graça e a beleza de Mariazinha que, alheia a tudo que ocorria, avivava cada vez mais aquela paixão cabocla no intimo do moço que a foi bus
car na casa de sua madrinha nos arredores de Alfenas numa noite de luar. Mariazinha foi a primeira que notou a frequente passagem de Basílio de Campos pelo sítio: ora, para ver o cafezal; ora para pedir uma caneca de água, e muitas – quantas – sem um pretexto plausível, razoável. Notou logo depois o modo penetrante e interessado como era encarada pelo forasteiro, e pensamentos atordoantes passaram a povoar-lhe o cérebro até então casto e indiferente. A má fama de Basílio era comentada, não só em Cunha como em toda região do Vale do Paraíba onde assinalava com proezas varias a sua passagem. Isso veio oprimir ainda mais o coração da caboclinha amante e fiel ao companheiro. Por vez abraçou Gregório, ou melhor – Gorinho, beijava-lhe as faces acetinadas, vendo naquela criança o fruto de sua paixão pelo Juca, e quantas vezes este não a surpreendeu naquelas caricias, notando-lhe a mágoa que a pungia e o embaraço com que respondia as suas perguntas. Sim, ignorante - Juca fez tudo para que Gorinho nunca viesse a saber quem fora a sua mãe e como esta procedera. De fato aos doze anos, de sua mãe Gorinho sabia apenas que tinha "morrido" sem saber como e quando. Não a tinha conhecido, portanto, não sentia sua falta, mas à sua morte atribuía a tristeza que dominava seu pai. Este numa romaria à Basílica da Aparecida deparou com a execrável presença de Basílio, que nele veio esbarrar em nítida atitude de provocação. A seu lado estava o filho quando, se desferisse o golpe, daí em diante Gorinho seria apontado ao mesmo tempo como filho de uma adúltera e de um assassino. Não, Gorinho havia de ignorar tudo isso. Um dia o mineiro voltou do campo e procurou Mariazinha por toda casa. Entrou em indagação e espalhou emissários, nada. Dias depois um tropeiro vindo de Guaratinguetá informou ao inconsolável Juca que a vira cavalgando na garupa do tordilho de Basílio. Pobre Juca... Daqueles tempos ditosos em que sua alma selvagem extasiava-se ante as caricias ingênuas da morena ingrata; nada mais lhe restava senão Gorinho a lembrança a amargurar-lhe o coração ferido. Com o filho nos braços chorou e depois procurou disfarçar sua dor voltando-se atento e carinhoso à criança querida e ignorante. Resolveu mudar-se para Ubatuba. Veio aqui, adquiriu um sítio. Voltou a Cunha, vendeu o de lá e partiu em companhia do filho. À beira-mar pensou que viveria mais despreocupado, sem temer encontrar-se com Basílio ou com algum indiscreto que revelasse a Gorinho o que este deveria ignorar por toda vida. Ao chegar ao alto da serra, falou:
– Gorinho, vês aquele verde azulado lá em baixo?... é o mar. Lá as margens do oceano é que vamos morar. Lança um ultimo olhar para estas regiões da serra acima e jura a teu pai que nunca mais passará por este caminho. Juras?
– Mas por que meu pai?
– Não indagues filho, prometes que não mais transporás esta serra?
– Prometo pai. Juca Mineiro deu rédeas ao animal e começaram a descer silenciosamente. Em dado momento cortando as conjeturas de Gorinho surgiu por entre dessas ramagens numa curva do caminho a figura de um homem que bradou fortemente.
– Juca! Você precisa morrer desgraçado! – e sem mais demora desfechou-lhe a pequena distancia um tiro de garrucha. Um grito doloroso e agudo partiu do pequeno Gorinho enquanto o miserável desaparecia no matagal da serra. Juca ferido de morte levou a mão crispada ao peito ensanguentado tombando pesadamente do animal que cavalgava. Gorinho lívido, alucinado correu para o pai não compreendendo o que se passava.
– Meu filho – falou o moribundo – vai perder teu pai... Não chores... Antes, porém, vou contar-te... a minha... a nossa história...
Com voz entrecortada narrou toda a infelicidade que pairou sobre ele com a ingratidão de Mariazinha. E terminou:
– Meu filho... um dia... vingarás teu pai... Deus te abençoe. E expirou. Gorinho plantou ali uma cruz tosca que depois foi substituída pela grande Cruz de Ferro “negra e muda". Assinalou assim o lugar aonde um dia viria trazer o testemunho de sua vindita. Onze anos são passados. Gorinho é um belo rapaz de vinte e três anos, delicadamente moreno cabelos pretos e ondulados, forte, alto, mas sempre sisudo por uma nuvem de tristeza. A todo instante seu comportamento denunciava profundíssimo pesar. Certo dia, numa fresca manhã de abril, deparando a figura odiada de Basílio, num dos armazéns comerciais da Prainha, a idéia da vingança prometida ferveu-lhe no peito. Célere, partiu pela estrada do Mato Dentro, levando nos lábios um sorriso contrafeito. Ia vingar o pai! Vingar! Pouco antes da cachoeira grande, no pé da serra, sentou-se numa pedra para descansar um pouco. Basílio, no armazém, pedira pressa para viajar ainda naquele dia, portanto não deveria demorar-se. Gorinho, a qualquer rumor escondia-se no denso matagal que beirava a estrada, espreitando, até que, na curva do caminho, surgiram algumas bestas trotando em direção a serra acima, logo atrás vinha. Basílio montado num cavalo baio, fumando despreocupadamente, esquecido talvez do hediondo crime que praticara, onze anos antes, um pouco mais adiante. Gorinho estremeceu, sacou de um punhal, saltou na estrada e gritou:
– Pára miserável! Salta do cavalo!
– Que queres? Eu não trago dinheiro! Levo apenas minhas bestas – respondeu Basílio. Deixando com moleza a sela, não reconhecendo no "ladrão" o filho de suas vítimas.
– Lembra-te de minha mãe?
– Tua mãe? Não sei não. Quem era tua mãe?
– Tens razão, eu nunca tive mãe... Lembra-te da desgraçada que roubaste de meu pai?
– Ah! És tu, Gorinho? Mariazinha... Basílio ainda quis falar, mas uma lâmina fria varou-lhe o coração. Gorinho, imperturbável, olhou o céu numa atitude de súplica e, lançando-se sobre o cadáver, com violência arrancou farrapos da camisa ensanguentada, montou no cavalo da própria vitima e partiu em disparada – para a serra. Ao transpor a volta grande avistou a "cruz solitária e misteriosa". De um salto deixou a alimária e, correndo em sua direção, com os olhos rasos de lágrimas, falou baixinho:
– Pai! Estás vingado! Eis aqui ainda quente o sangue de quem te fez desgraçado. E, como no cumprimento de um dever, depôs nos braços da Cruz de Ferro os farrapos ensanguentados. Osculou-a e ia retirar-se quando observou viajantes que desciam, vencendo a longa caminhada, parecendo extasiados, na contemplação do maravilhoso cenário que dali se descortina. O rapaz tremeu. Estavam já á poucos passos. Rápido volveu os olhos para a cruz onde pusera os farrapos ensanguentados.
– Milagre! Viam-se agora nos braços corroídos o enroscado caprichoso de uma planta silvestre e balouçando á fresca aragem da tarde, rubras corolas de... flores perfumadas! E por isso que tão bem disse Cesídio Ambrogi:
– Milagre! Em abril contam viajantes: "se lhe enroscam nos braços rubras flores, como se fossem rosa a sangrar..." (Lenda popular de domínio público)